Caminhos e conclusões

Ao longo deste trabalho, defendi que a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo foi uma universidade singular – não só dentre as universidades brasileiras, mas também dentre as instituições de ensino lig/adas ao Vaticano. Cabe explicar o que a tornou singular e o porquê desta afirmação estar no passado e não ser, mais, exatamente verdadeira no presente.

Como demonstrado na sessão destinada à história institucional da universidade, a PUC-SP nasceu como uma escola destinada a dar continuidade e manter um projeto de poder da Igreja Católica em São Paulo. Ainda assim, ela se pretendia desde o início uma universidade “aberta”, o que significaria ser construída com a participação de diversos setores de dentro da Igreja e, também, de quadros externos a ela (leigos, então), mas próximos religiosamente. Defini-la como “aberta”, então, significou antes uma contraposição a outras PUCs que vinham se constituindo – como a do Rio de Janeiro, mantida por jesuítas. Naqueles primeiros anos, no entanto, a relação institucional e ideológica era bastante alinhada à da Igreja.

O autoritarismo da ditadura militar, a mudança de legislação promovida pelo regime e alterações regimentais internas que aumentaram a independência da PUC-SP frente à Igreja reverberaram com um outro tipo de abertura – agora em direção à autonomia e democracia.

Quando a PUC-SP tinha ainda menos de duas décadas de existência, o golpe militar mutilou, a partir de 1964, um projeto nacionalista de universidade que estava sendo aplicado no país de forma pioneira na Universidade de Brasília (UnB) pelo jurista Anísio Teixeira e pelo antropólogo Darcy Ribeiro, que foi ministro da Educação e chefe da Casa Civil no governo João Goulart. Em um momento em que raras universidades excediam o ensino dentre suas atribuições – deixando de lado a pesquisa e a extensão, hoje consagrados constitucionalmente como alicerces de uma universidade –, o projeto para a UnB buscava a constituição de uma consciência crítica, politizada e contrária a uma “falaz neutralidade das ciências” (RIBEIRO, 1975, p. 267).

A ditadura militar promove, à sua maneira de economia liberal, algumas das mudanças propostas por Darcy Ribeiro. Contrariamente a outras ditaduras latino-americanas, como a chilena ou a argentina, o regime brasileiro optou por um desenvolvimentismo que impulsionou a criação de universidades públicas e gratuitas, ainda que sob forte ingerência estatal impedindo, assim, a desejada constituição de uma consciência crítica, tal como Darcy Ribeiro esperava.

Assim, somente alguns mecanismos – como o fim das cátedras e a organização das universidades em torno de institutos, faculdades e departamentos – são aplicados. Outros, como o primeiro ciclo, já aplicado na UnB com vistas a garantir a interdisciplinaridade e troca entre cursos, são instituídos com motivações deturpadas das originais. Especificamente no caso do primeiro ciclo, o objetivo da ditadura passa a ser superar, no primeiro ano após a aprovação pelo vestibular, as deficiências do ensino médio, em uma concepção em nada semelhante com o estímulo à crítica – até porque esta era vigiada e censurada no período.

A universidade do período é compreendida por Marilena Chauí como a universidade funcional, que realizou “a abertura indiscriminada de cursos superiores, o vínculo entre universidades federais e oligarquias regionais e a subordinação do MEC [Ministério da Educação] ao Ministério do Planejamento”. A filósofa ainda considera que aquela universidade adaptou-se às exigências do mercado e buscava a “formação rápida de profissionais requisitados como mão-de-obra altamente qualificada para o mercado de trabalho” (CHAUÍ, 2000, p. 189).

Também a ditadura pôs fim a qualquer possibilidade de mobilização estudantil que reivindicasse uma reforma universitária com vistas à democratização de sua estrutura, como a que houve em 1962. Naquele ano, estudantes da maior parte das universidades então existentes paralisaram as atividades reivindicando um terço da composição dos conselhos deliberativos das instituições para os discentes.

Mas, com a ditadura, a organização estudantil é cerceada, com a transformação de centros em diretórios acadêmicos (ou seja, vinculados à administração universitária) e com a extinção oficial das entidades autônomas de representação estudantis, como a União Nacional dos Estudantes (UNE). Assim, acaba-se com a possibilidade de representação estudantil dentro das instituições de ensino, um passo necessário à autonomia universitária – a qual, por sua vez, é evidentemente necessária para o desenvolvimento crítico da reflexão sobre a sociedade.

Na PUC-SP, a resposta se dá pelo caminho oposto. Em um período de quase 15 anos, do en/durecimento da ditadura em 1968 às primeiras eleições diretas para governador em 1982, as medidas ditatoriais citadas acima vão sendo combatidas uma a uma.

Se nos primeiros anos após o AI-5 os centros acadêmicos ficam esvaziados até sua transformação em diretórios, a resistência traz o movimento estudantil de volta à PUC-SP na década de 1970. Como exemplo deste processo, o curso de Direito tem, por alguns anos, a coexistência de um diretório e de um centro acadêmico. Também é dentro da universidade que a UNE é refundada em 1977, motivando a invasão pelas tropas de Erasmo Dias ocorrida naquele ano.

Paralelamente, o primeiro ciclo é implantado na PUC-SP com o nome de “ciclo básico”, para fazer o aluno aprender a “ser dentro da universidade” (NAGAMINE, 1997, p. 102), em uma concepção próxima daquilo que Darcy Ribeiro defendia para a UnB.

A luta pela democracia interna também apareceu, já como uma resultante desta estrutura formada, que valorizava a autonomia e o pensamento crítico, tal como preconizado pelo Documento de Buga – e escamoteado pela ditadura. Foi, assim, que a PUC-SP tornou-se a primeira universidade brasileira a votar para reitor em 1980 ou a primeira a incorporar aquela reivindicação dos estudantes de 1962 e permitir, de forma paritária, a participação dos três setores da universidade em seus conselhos deliberativos ainda antes do fim da ditadura.

É isso, em termos essencialmente institucionais, que fez da PUC-SP uma universidade singular, que permitiu seu crescimento com autonomia e excelência acadêmica. E mesmo durante suas crises financeiras do período e posteriores a ele até 2004 manteve-se uma postura de não deixar “nenhum aluno fora da PUC por falta de recursos materiais” (PETERSON, 2002, p. 89).

Quanto a isso, cabe um parêntesis: quando, sobretudo a partir de 2004, passou-se a atacar os gastos e encarar a situação dos inadimplentes como um empecilho para sanar a dívida da universidade, argumentou-se que “cortar a própria carne” seria a única saída para o problema financeiro da PUC-SP. Foi com este argumento que passou-se a temer (e, justamente por este temor, permitir) a intervenção da Igreja na universidade.

O argumento é uma falácia por si só. Mas, pela história das crises da universidade, é igualmente contestável na medida em que a PUC-SP já havia superado dívidas anteriores tão altas quanto os R$ 95 milhões em empréstimos com instituições financeiras encontrados em 2004 – quando do início das demissões em massa –, em valor atualizado pelo IPCA-E (nos valores de então, a dívida estava em R$ 56 milhões). Onze anos antes e somente alguns meses depois do fim da desastrada intervenção de Vicente Benzinelli, da Fundação São Paulo, o PUCViva anunciava que a dívida da PUC-SP estava em US$ 20 milhões – ou cerca de R$ 102 milhões em valores atualizados pelo IPCA-E (PUCVIVA, 1993, nº 2).

Esta breve análise da dívida financeira mostra, então, como o tema foi utilizado para retirar da PUC-SP aquilo que a tornava tão singular: esta autonomia conquistada pela resistência à ditadura militar que trouxe, em larga medida, democracia às decisões da comunidade. Mas o projeto imposto a partir de 2004 tenta aproximar a universidade do ideal liberal homogêneo para as instituições do período – um reflexo direto daquele projeto que já se desenhava nos anos 1970 e uma das provas de que o projeto militar como um todo foi bem sucedido.

Através de sucessivas medidas para reduzir os contratos dos professores, os salários dos funcionários ou a participação dos três setores nas decisões acadêmico-financeiras, a PUC-SP passou a desvalorizar sua comunidade enquanto um todo e a pesquisa e extensão em particular. Já próxima desde os anos 1990 do setor privado para parcerias financeiras, é a partir de 2004 que a PUC-SP dá passos largos em direção à sua transformação em uma universidade operacional, um termo que Marilena Chauí resume como uma “universidade não forma e não cria pensamento, despoja a linguagem do sentido, densidade e mistério, destrói a curiosidade e a admiração que levam à descoberta do novo, anula toda pretensão de transformação histórica como ação consciente dos seres humanos em condições materialmente determinadas” (CHAUÍ, 2000, p. 193).

É que a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo se perdeu daquele vanguardismo que a marcou entre as décadas de 1960 e 80. Deixou de valorizar a formação crítica e politizada, funcionando “para a formação das fornadas de ‘colarinhos brancos’ rumo às usinas, escritórios e dependências ministeriais”, como definiu Maurício Tragtenberg em “A Delinquência Acadêmica”. Ao tomar este caminho de uma formação acrítica, o estudante da PUC-SP passa a ser uma engrenagem do sistema. Ele não avalia os efeitos de seu trabalho. Alienado, contribui para que nenhuma transformação se realize na sociedade. E a universidade perde sua função mister, de analisar, questionar e apontar os caminhos possíveis para os questionamentos contemporâneos. Em uma linha, na definição de Maurício, é a delinquência acadêmica. Mas este diagnóstico não é definitivo. Tal como a PUC-SP superou e rompeu as amarras que a prendiam à Igreja em seus quinze primeiros anos, caberia uma reflexão da comunidade com vistas a avaliar o que, afinal, nos trouxe até aqui. Uma democracia incompleta, a resistência de determinados setores da Igreja e da comunidade e a falta de interesse e/ou reconhecimento da (importância da) participação estudantil nos conselhos da universidade frente aos primeiros revezes caberiam nestas discussões.

Entender a necessidade de tomar a PUC na mão e construí-la, não buscando usar a universidade em benefício exclusivo das próprias pautas é uma reflexão imediatamente necessária aos movimentos que atuam dentro da universidade. Pois nada há de mais destrutivo a longo prazo do que o consumo da estrutura universitária em benefício próprio ou do próprio coletivo. Afinal, este consumo resulta em v/ácuos: terrenos abertos para o avanço das forças exteriores que a PUC-SP soube tão bem combater durante a ditadura militar (e aqui demonstrado em alguns episódios).

Fazendo uma analogia, vale lembrar uma nota de David Lowenthal, que diz que “entre os suailes, os mortos que permanecem vivos na memória dos outros são chamados de ‘mortos-vivos’; só estarão completamente mortos quando o último que os conheceu morrer” (LOWENTHAL, 1998, p. 80). Assim, enquanto houver alguém na PUC-SP disposto a pensar e lembrar um passado tão recente que moldou esta universidade e mostrou que algo próximo do modelo defendido por Maurício Tragtenberg, Marilena Chauí e outros foram e são possíveis, ainda haverá possibilidade de resistir à universidade formadora de colarinhos brancos.