Democratizar a comunicação promovendo uma “reforma agrária no ar”. É assim que movimentos contra a concentração da mídia no país definem, desde antes do fim da ditadura militar, a luta para fazer com que tenham acesso às ondas eletromagnéticas mais do que as cerca de 12 famílias que operam as principais redes de TV e rádio do país – além de outros veículos de comunicação de grande alcance.
Como resposta à existência destas rádios (que, em geral, não se reivindicavam políticas), as grandes empresas de comunicação fazem campanhas e lobby pela criminalização das transmissões irregulares. Em uma memória trazida por Arlindo Machado, Caio Magri e Marcelo Masagão no livro “Rádios Livres: a reforma agrária no ar”, os autores lembram que, já na década de 1970, na Itália, uma companhia aérea “introduziu uma polêmica ridícula, baseada no argumento de que as emissões clandestinas estavam provocando interferências nos aparelhos de comunicação de bordo, durante a operação de aterrissagem. [...] O pânico era artificialmente produzido para manipular a opinião pública, pois jamais aconteceu acidente algum devido a emissões radiofônicas” (1987, p. 65).
A argumentação é repetida mesmo nos dias de hoje: o áudio dos últimos segundos do vídeo é justamente de uma dessas campanhas, veiculadas em rádios brasileiras na última década.
Em 2005 o projeto da Rádio Xiado já completava dois anos quando uma carta da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) endereçada à reitoria resultou na retirada da antena da rádio. O confisco do equipamento, que ficava do lado de fora de um centro acadêmico, ocorreu durante o recesso acadêmico determinado pela administração da universidade como luto pela morte do Papa João Paulo II, que faleceu em 2 de abril de 2005.
A rádio nasceu inspirada pela Rádio Muda, mantida há mais de 20 anos por estudantes da Unicamp. Só depois, como os membros do coletivo contam, soube-se que esta era a segunda experiência de rádio livre dentro da PUC-SP: a primeira tinha sido a Rádio Xilik, que recebeu até apoio da universidade para se manter no ar durante seus quase dois anos de existência, entre 1984 e 1986. Sabendo dela, os estudantes que criaram a Xiado optaram por este nome (com X, mesmo) como uma forma de homenagear a Xilik.
Quando do confisco da antena, a Rádio Xiado tinha poucos meses de transmissão dentro da PUC-SP. Fora dela, alguns experimentos já haviam acontecido, mas a opção pelo desenvolvimento da programação de dentro da universidade buscava trazer uma voz daquela comunidade para a frequência modulada.
O realce da importância da comunidade é significativo da valorização que o coletivo fez do processo e dos meios, que se colocavam acima dos resultados finais. Isso mesmo era também uma forma de resistência, não só aos métodos do movimento estudantil (entendido pelo grupo como excessivamente burocratizado na época), mas também aos grandes meios. Afinal, a rádio era uma “imperfeição assumida que se propaga no ar”, como uma vinheta afirmava. “Não são só aqueles que detêm os meios técnicos de transmissão os que têm direito a transmitir”, explica Bruno Fiuza.
Por essa valorização dos meios, a mobilização em torno da rádio – sempre acompanhada do questionamento sobre a concentração da mídia – vinha desde 2003 e seguiu posteriormente ao fim de suas transmissões na PUC-SP. Entre atos públicos e apoio a movimentos, o coletivo mantinha seus programas, onde chegou a entrevistar o cartunista Laerte meses após o confisco da antena.
O alcance da rádio também era limitado. Pelo relevo desfavorável de Perdizes, pelas dimensões diminutas da antena e, também, devido a uma potente rádio programada para a mesma frequência do transmissor, as ondas da Xiado não excediam alguns quarteirões mesmo nos melhores dias.
Assim mesmo, a universidade não quis comprar a briga com a Anatal. A Profª. Maura Véras, então reitora, declarara aos estudantes do coletivo que “a PUC já tem problemas suficientes. [...] Não tenho condição de pagar multas diárias”. Quando confrontada com a experiência de quase dois anos que a Rádio Xilik teve dentro da universidade a partir de 1984, a resposta foi que “os tempos eram outros”. Mas aquela rádio também lutava por uma democracia, que não mudou com a nova Constituição. Os outros tempos, então, poderiam ser assim avaliados mais em virtude de uma mudança na postura da universidade com os coletivos que problematizavam a realidade do que da sociedade como um todo.
Em uma experiência relatada por Rosemary Segurado em sua dissertação de mestrado, uma sentença de 1994 no processo contra a Rádio Reversão e um de seus articuladores, o jornalista Léo Tomaz, abriu um precedente jurídico a partir do qual “ficou configurada uma nova situação para as rádios livres e comunitárias” (SEGURADO, 1995, p. 103). A rádio existiu em São Paulo por dois anos, quando seus equipamentos foram apreendidos, em 1991, pela Polícia Federal e por agentes do então Departamento Nacional de Fiscalização das Comunicações (Dentel). A rádio também tinha pouco alcance e grande participação da comunidade, o que pesou a favor dos réus para a decisão, a qual considerou a rádio o produto de uma manifestação cultural e sua existência possível graças à liberdade de expressão, conforme definição dada pela Constituição Federal de 1988.
Ainda que a Rádio Reversão tivesse se beneficiado de um vácuo jurídico (dado não haver, até então, qualquer legislação a respeito de rádios de pequeno alcance), a restritiva Lei 9.612, sancionada em 1998, não foi o suficiente para trazer avanços. Tampouco a tramitação burocrática tornou-se menos morosa. Há casos em que rádios comunitárias têm que esperar 15 anos para obter uma outorga, como exigido pela lei (ARTIGO 19, AMARC, MNRC; 2013; p. 10).
No caso da Rádio Xiado, não havia propriamente um interesse em legalizar a situação. A resolução do caso, no entanto, através de notificação extrajudicial da reitoria, impediu qualquer debate e problematização do tema – coisa que a PUC-SP fazia tão bem na época da Rádio Xilik, sendo uma verdadeira universidade –, à maneira do que foi provocado pela Rádio Reversão.