Em 1977 tropas da Polícia Militar sob o comando do então secretário de segurança pública, coronel Antônio Erasmo Dias, invadiram o campus Perdizes da PUC-SP. Seria a última grande investida da ditadura militar contra o movimento estudantil do país, que vinha tentando se rearticular depois que o regime decretou a ilegalidade da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1964 e prendeu centenas de militantes em 1968, em um congresso da entidade que acontecia em Ibiúna (SP).
No dia 22 de setembro de 1977, o 3º Encontro Nacional de Estudantes ocorreu secretamente nas dependências da PUC-SP. Era para ter acontecido um dia antes na USP, mas a polícia foi informada e cercou a Cidade Universitária, no Butantã. Com a medida, cerca de 1,5 mil estudantes se reuniram em frente à PUC-SP depois que o encontro clandestino terminou. Eles iniciavam um ato de denúncia à sociedade sobre a repressão militar quando a polícia chegou e cercou o quarteirão onde o campus fica. A universidade foi invadida pelos soldados, que deixaram salas de aulas depredadas, livros espalhados pelo chão e forte cheiro de gás lacrimogêneo no ar. Um descontrolado Erasmo Dias anunciou diante das câmeras de TV: “Ato público está proibido! Não admitimos passeata, nem comício. Tá todo mundo preso!”.
Uma nota da Secretaria de Segurança Pública do dia seguinte à invasão policial contabilizou “cerca de 500” pessoas ouvidas e liberadas 24 horas depois. Os jornais da época falam em mil a 3 mil professores, estudantes e funcionários confinados naquela noite em um estacionamento que ficava em frente ao campus. A reitoria e a Arquidiocese de São Paulo deixaram – de maneira imediata – clara e evidente a indignação. Mas um fato desses não seria lembrado só naquele momento. Por anos o dia 22 de setembro foi data simbólica a ser memorada com atividades variadas. Vejamos duas delas.
Exatos seis anos depois, em 22 de setembro de 1983, um grupo de estudantes “emprestou” de um circo da cidade três elefantes e quatro galinhas enfeitadas com fitas verde-amarelas, que foram levados para o campus Perdizes. No ano da invasão, Erasmo Dias era secretário de segurança pública, Pauli Egídio Martins era governador do estado, Olavo Setúbal era o prefeito do município e Romeu Tuma era o delegado-chefe do Dops. No dia seguinte ao arranjo dos animais, a Folha de S. Paulo cravou que as galinhas representavam essas quatro autoridades, culpadas pela invasão policial de 1977. Eduardo Zanatta, um dos estudantes responsáveis por levar os animais à universidade, contou na mesma matéria que a presença dos elefantes simbolizava uma tentativa de “traçar um paralelo com o gigantismo da universidade e seu ensino, embora a produção cultural seja mínima, assim como o cérebro desses animais”. Outra versão que ganhou repercussão dentro da PUC-SP era de que os elefantes representavam o peso da ditadura militar na história.
Mas Renato Ganhito, que estudou na PUC-SP entre 1981 e 1984 e foi um dos responsáveis por levar os elefantes para a universidade, diz que não é nada disso: “A gente só queria se divertir”. E ele vai além: “Quem disser outra coisa está mentindo”.
Não é necessário considerar que toda ação é política. Assim, mesmo que desprovida de representação, levar elefantes à PUC-SP em 22 de setembro de 1983 é um ato essencialmente político. Aliás, está precisamente na falta de representação que esta ação torna-se política. Isso porque ela parte de uma diferenciação com relação a outros grupos e modos de fazer política que dominavam o movimento estudantil em geral – e na PUC-SP em particular – que atuavam com um discurso em geral despreocupado com a própria forma. A negação, então, de qualquer representação vem para romper com o discurso. Tal como apontou Wander Wilson Chaves Júnior, no trabalho “Cacs: Autogestionário, Independente e o Cacete”, a recusa desses estudantes ao discurso do movimento estudantil de então estava relacionada com a “hierarquização resultante de um modelo de se fazer política ligado à instrumentalização partidária [que] acarretava também na manutenção de uma forma de palavra”. Essa mesma recusa foi o que motivou outras intervenções e performances do período, como a “Marcha sem Motivo” ou a transformação de uma área entre os dois prédios do campus Perdizes em uma prainha.
A posição em muito se assemelha a outras tomadas ao longo do século XX no campo da arte contemporânea, como o concretismo. Às possibidades de interpretação, inclusive, é que Renato aproxima o feito dos elefantes: como toda arte, a performance daquele dia permite múltiplas interpretações.
A invasão da PUC-SP de 1977 resultou em enorme projeção e ganho político a Erasmo Dias. Eleito deputado federal no ano seguinte, ele foi o quarto candidato mais votado do estado de São Paulo. Mas só em um país que não supera seu passado e resiste tanto a construir uma memória e justiça sobre a ditadura militar é que esse ganho seria tão duradouro: o coronel foi eleito deputado estadual nos pleitos de 1986, 1990 e 1994. Em 2000, ele teve votos o suficiente para se eleger vereador do município de São Paulo.
Em 1987, dez anos depois da invasão e nos primeiros meses de discussão no Congresso sobre uma nova constituição para o Brasil, os estudantes da PUC-SP que se organizavam em torno do CACS – tal como aqueles que levaram elefantes à universidade em 1983 – deram o troco e invadiram o gabinete de Erasmo Dias na sede da Assembleia Legislativa. Balas de açúcar, bombas de chocolate e bananas foram entregues ao deputado. Ele também recebeu uma coroa de flores com a inscrição “Feliz Morte” e um cartão que dizia: “Erasmo, que Deus o leve, que Golbery o abrace e que Jânio seja o próximo”.
Diferentemente de 1983, não há divergência de que esta ação tenha sido marcada pela representação. As bananas, por exemplo, eram entregues aos “gorilas” – como explicou o jornal O Estado de S. Paulo, esse era um apelido dado aos militares anti-comunistas da ditadura argentina. O cartão entregue a Erasmo fazia referência a Golbery do Couto e Silva – militar criador do Serviço Nacional de Informação (SNI) que havia falecido quatro dias antes – e ao então prefeito e ex-presidente Jânio Quadros. A resposta de Erasmo Dias foi simbolicamente violenta. Em meio a frases como “Vocês não são machos para mexer na minha honra e no meu brio”, ele causou pânico por alguns instantes quando sacou a arma que matinha em sua gaveta depois de receber uma bala de açúcar. Wilton Olivar Assis, um dos cerca de quarenta estudantes que promoveram a invasão ao gabinete, conta que o assessor de Erasmo ficava suplicando para que o coronel não fizesse nada com a pistola. Calmamente, o deputado retirou do pente da arma uma bala – esta, de verdade – e entregou-a a um dos estudantes presente.