O segundo período começa já com dom Paulo Evaristo Arns à frente da Igreja Católica em São Paulo. O jornalista Ricardo Carvalho, que teve contato direto por anos com integrantes da Igreja Católica, avalia que Dom Paulo foi nomeado arcebispo de São Paulo depois que o cardeal e arcebispo de São Paulo entre 1962 e 1970 dom Agnelo Rossi rezou, em 31 de março de 1970, uma missa lembrando o golpe, que completara seis anos naquele dia.
“Foi a gota d’água para dom Aloísio [Lorscheider, então secretário-geral e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)] procurar o papa Paulo VI e demonstrar que dom Agnelo não poderia ficar a reboque do regime [...]. Ao mesmo tempo, dom Aloísio defendeu o nome do fransciscano dom Paulo Evaristo Arns, que já vinha, como bispo-auxiliar da Zona Norte da capital paulista, aplicando, ao pé da letra, as orientações do Concílio Vaticano II (1963/1965) e avançando na aplicação da Teologia da Libertação (1968)”, explica Ricardo, lembrando que dom Agnelo foi “‘promovido’ meses depois para um alto cargo na Cúria Romana” (2013, p. 54).
É sob a influência do “cardeal da resistência”, direta à PUC-SP, que esta universidade tem o seu período mais vivo e de maior autonomia – e, por isso mesmo, de maior contestação e problematização das questões que se colocavam para a sociedade brasileira da época.
É notório que a primeira grande medida de dom Paulo foi a nomeação de Nadir Kfouri para a reitoria, em 1976, para ocupar o cargo até então exercido por Geraldo Ataliba, que sucedeu Bandeira de Melo em 1972. Em 1976, então, um grupo de professores, como se fazia a cada quatro anos, levou o nome de Nadir – que já havia sido ventilado em outra ocasião – para o arcebispo: “Este me chamou e eu, cheia de argumentos para não aceitar. D. Paulo não deu muita chance: ‘Já sei de todos os seus argumentos. Mas sei que seu nome tem boa aceitação na comunidade. Acontece que este é o Ano Internacional da Mulher e eu gostaria muito que na reitoria da PUC estivesse uma mulher’” (PORANDUBAS, nº 83, p. 5).
A escolha de uma mulher para o cargo fez da PUC-SP a primeira universidade católica em todo o mundo a ter uma mulher à sua frente.
O espaço de relativa liberdade dentro da PUC-SP, em contraste com o Brasil de então, fez do campus de Perdizes o espaço ideal para estudantes de todo o país se reunirem, enquanto delegados, para, em congresso mantido em sigilo até mesmo da reitoria, refundar a União Nacional dos Estudantes em 1977. Com as informações da realização deste congresso e, também, de um ato público, na rua, que marcava a referida refundação, tropas da Polícia Militar, a mando do Secretário de Segurança Pública de São Paulo, coronel Erasmo Dias, invadiu o campus, resultando na detenção de centenas de pessoas e na destruição considerável de parte do patrimônio da universidade.
A invasão teve grande repercussão na sociedade e na mídia da época. A exposição beneficiou Erasmo Dias, que começou sua carreira política no ano seguinte, candidatando-se a deputado federal. Naqueles anos de ditadura, em que apenas deputados federais, estaduais e vereadores eram escolhidos pelas urnas, o coronel conseguiu o quarto melhor resultado de 1978 em São Paulo. Sua carreira na política só teve fim em 2004, com o fim da legislatura que havia lhe garantido um espaço na Câmara dos Vereadores da capital paulista.
Já em 1980, com o fim da primeira gestão de Nadir, a comunidade puquiana pôde, pela primeira vez em uma universidade brasileira, escolher o seu reitor através do voto. De acordo com a Associação dos Professores da PUC-SP (Apropuc), foi depois de uma assembleia da entidade, quando se aprovou “o desejo do conjunto dos professores em participar da escolha do nome do novo reitor”, que o tema foi levado a dom Paulo (APROPUC, 1981, p. 62).
O arcebispo, então, escreveu à comunidade solicitando a elaboração de uma lista de seis nomes, a partir da qual seria escolhido o novo reitor. O pedido seguia o que mandava o estatuto em vigor à época, com um diferencial: na carta, haviam delimitações que deixavam para cada entidade de representação setorial (ou seja, as associações dos funcionários, dos professores e o Diretório Central dos Estudantes) a indicação de um nome. Os três nomes restantes para a composição da lista sêxtupla ficavam abertos para escolha pelo Conselho Universitário (Consun). Dom Paulo, no entanto, fazia uma ressalva: “Gostaria, porém, de pedir aos Senhores Membros do Conselho que consultassem os setores que representam, no modo que o próprio Conselho Universitário julgar mais adequado”.
A proposta da Apropuc a Dom Paulo surgiu com os intensos debates dos anos anteriores que questionavam a estrutura de poder da universidade de então e pediam maior participação da comunidade nas decisões, incluindo representação nos espaços de deliberação. Apesar de reconhecer os limites desta resposta de Dom Paulo que mantinham a escolha do próximo reitor presa às amarras do estatuto de então – nomeadamente, a elaboração de uma lista sêxtupla (no lugar de uma escolha direta), a manutenção de indicações feitas pelo Conselho Universitário (Consun) e a elegibilidade somente a professores com título de doutor e com ao menos cinco anos de trabalho na PUC-SP –, a entidade considerava que este passo “criava condições mínimas para a participação política qualitativamente diferente e superior por parte da comunidade”.
Na eleição, venceu Nadir Kfouri, que permaneceu até 1984 no cargo que ocupava desde 1976. Sua única concorrente foi a professora Haydée Roveratti. A votação foi paritária, onde os três setores possuem o mesmo peso de voto. Nos dois dias do pleito participaram 9.222 pessoas – entre professores, funcionários e estudantes – de um universo total de 17.700 votantes. O primeiro número encontra-se disponível em “Uma experiência democrática: o caso PUC/SP”, da Apropuc, enquanto o segundo é resultante da soma de valores em PAIPUC, 1997, pp. 12-13.
Apesar da escolha, em processo referendado por 52% da comunidade, o Consun fez a sua própria votação. Sem critérios definidos no estatuto, os conselheiros puderam enviar seis nomes resultantes de votação própria (APROPUC, 1981, pp. 63-64). Mesmo neste pleito, restrito a 61 votos, Nadir Kfouri foi a mais votada. Dom Paulo acolheu o resultado – como faria até 1998, com o fim de seu arcebispado – e garantiu a Nadir mais quatro anos na reitoria, como escolhera a comunidade.
Refletindo sobre a participação da comunidade nesta eleição e seus dez primeiros anos como arcebispo, é reveladora a fala de dom Paulo Evaristo Arns ao Porandubas sobre sua relação com esta universidade: “nesses dez anos, a eleição foi o momento mais feliz que tive com a PUC. O que me incomodava e incomoda é que os estudantes queiram consumir a PUC e não construí-la. É preciso que eles tomem a PUC na mão e não resolver seus problemas através dela: o consumismo não deve entrar na juventude, nem na universidade. Mas agora eu vi os estudantes construindo juntos, uma organização de baixo para cima que se exprimiu através do voto” (PORANDUBAS, nº 33, p. 3).
Logo em seguida à eleição para reitor, começaram também as discussões para votação de diretores das faculdades. Todas tiveram participação de alunos, professores e funcionários, mas ainda ali se discutia se o mesmo critério de proporcionalidade para o voto aplicado no pleito para reitor deveria ou não ser mantido nestas votações, dado que a quantidade de funcionários em determinadas faculdades era pequena e poderia gerar distorções.
Em 1984 um incêndio consome o Teatro da Universidade Católica (TUCA) no exato 22 de setembro em que a invasão policial de 1977 completava sete anos. Ainda sob a ditadura militar, as causas do incêndio nunca foram oficialmente esclarecidas. O teatro abrigara reuniões, atos e shows que desafiaram o regime ao longo de sua história, desde sua fundação, em 1965, com a premiada “Morte e Vida Severina”.
Paralelamente a isso, a PUC-SP seguia rediscutindo sua estrutura de poder. Em 1985 foi aprovado um novo estatuto garantindo a paridade em todos os conselhos deliberativos da universidade. Quer dizer, funcionários, professores e estudantes passaram a ter, cada setor, a possibilidade de escolher até um terço das cadeiras a serem ocupadas em cada instância. Nos cursos, também foram instaladas, ao longo do final da década de 1970 e início da década de 1980, comissões paritárias que definiam os rumos dos cursos e reformas curriculares.
Da parte estudantil, a reivindicação era velha de, pelo menos, 1962, quando a UNE promoveu pelo país a “greve do 1/3”. A ditadura abortou estas discussões e planos através de sucessivos decretos que retiraram da universidade qualquer autonomia, como falamos acima. Esta legislação, então, seguia sendo um empecilho para a homologação do estatuto aprovado. A situação jurídica da universidade permaneceu confusa por alguns anos, com estruturas respondendo ao novo (e negado pelo governo) estatuto e práticas se guiando pelo estatuto antigo. Assim, a indefinição abriu brechas para decisões monocráticas da reitoria – em especial àquelas que envolviam verbas e mensalidades. Em 1987, Eder Tésio Santi, estudante e membro do Conselho Comunitário, definiu sua participação como “perda de tempo” e justificou assim a gota d’água que o levou a desistir do conselho: “Foi quando, através de um acordo com os funcionários, conseguimos diminuir o índice de aumento das mensalidades. Nesse momento, o reitor alegou que os conselhos eram apenas indicativos, ignorando nossa decisão” (PORANDUBAS, nº 132, p. 3). Mesmo com problemas, o quadro geral da PUC-SP era absolutamente progressista. Com propostas de vanguarda, a universidade antecipou-se por anos a um momento posterior da história brasileira, de redemocratização, e pôde, por isso, pautar largamente a sociedade que se livrava de forma “lenta, gradual e segura” dos militares no poder. Quem atesta isto com muita clareza é Luiz Eduardo Wandemarin Wanderley, professor que sucedeu Nadir Kfouri na reitoria, entre 1984 e 1988: “A PUC-SP inclusive é, no conjunto das Católicas no Brasil, a mais secularizada, tanto que eu mesmo, quando estava na administração, tinha muita dificuldade para dialogar com as Católicas, porque algumas delas são bastante comerciais, no sentido mais profundo da palavra” (CIAMPI, 2000, p. 89).
Em 1987, a crise financeira da PUC-SP, que se arrastava desde o início dos anos 1970, chegara a seu limite. A instituição já havia vendido imóveis para fazer caixa, mas, “quando os recursos se esgotaram, passou a não recolher os impostos retidos e as demais contribuições sociais” (PUC-SP, 2006, p. 2). A universidade, mesmo que privada, sempre buscou solucionar seus problemas financeiros com verbas públicas, acreditando ser esta a maneira de evitar a mercantilização da educação, de um lado, e a elitização do perfil de seus estudantes de outro. É importante notar que esta foi a preocupação norteadora das gestões da reitoria do período e, também, da Igreja: era conhecida a posição de dom Paulo em relação à opção preferencial pelos pobres e seu interesse em fazer da PUC-SP uma instituição sempre em contato com o povo.
De fato, uma análise da composição orçamentária da PUC-SP ao longo dos anos nos mostra que as verbas destinadas pelo Ministério da Educação à universidade despencaram ao longo de um decênio. Se, em 1962, tais verbas representavam 76,47% do orçamento da PUC-SP, os anos seguintes foram vendo significativos e bruscos cortes que culminaram, em 1972, com o Ministério da Educação compondo somente 6,11%. A partir do ano seguinte, a PUC-SP passaria a ser deficitária. Mesmo assim, a destinação de verbas públicas continuaria a cair nos anos seguintes (APROPUC, 1981, p. 109).
A comunidade, então, iniciou uma forte campanha que culminou, em junho de 1987, com um plebiscito, de grande participação da comunidade, para uma solução à crise. As opções eram a estadualização da PUC-SP – ou seja, transformar a universidade em patrimônio do estado de São Paulo – ou a publicização – que faria a gestão desta universidade ser compartilhada, em uma fundação mista, entre o Estado e a Igreja, apostando também em mudanças que poderiam ser proporcionadas pela Constituinte reunida naquele ano em Brasília.
Com mais de 10 mil votos computados, venceu a estadualização, com 63% dos votos dos três setores – em número já normalizados de acordo com a paridade (PORANDUBAS, nº 126, p. 3).
Mas dom Paulo não acolheu o resultado, jogando um balde de água fria na comunidade: “não admitimos nem mesmo a hipótese da espoliação da PUC-SP pelo Estado. A liberdade vale mais do que o dinheiro mal distribuído ou a tutela do Estado. Preferimos ser uma PUC-SP menor – talvez bem menor – com pessoas decididas a lutar pelo Evangelho de Cristo, a nos intimidarmos com qualquer ameaça de estatização”. O argumento era que, com a experiência vivida apenas dez anos antes, sob uma ditadura que restringiu o ensino de professores considerados “subversivos” em universidades públicas e com a acolhida que só a PUC-SP deu a eles, era necessário garantir a pluralidade: “escola única é mais corrosiva que partido único”, disse (PORANDUBAS, nº 127, p. 5).
Este período se encerra com o fim do Ciclo Básico, conforme votação de 1988 do Consun. Cada vez mais fechado sobre si mesmo, o Básico não conseguia mais garantir a interdisciplinaridade esperada. Em geral, também falhou a vontade inicial, exposta por José Nagamine na elaboração do Básico, de fazer existir um trânsito entre os professores dos demais níveis (quais sejam, da pós-graduação e das diversas graduações da universidade) com os do Básico. Não houve, assim, a rotatividade esperada, prejudicando aquele projeto inicial defendido em 1971.
Vale reproduzir a certeira avaliação de Helenice Ciampi, para quem “a criação e extinção do Básico traduz uma identificação e afastamento da concepção de currículo como arma política. Esta concepção evidenciada nos anos setenta, com a criação do Ciclo Básico, com uma conotação essencialmente política, reveste-se em 1988, com a extinção do Básico, de uma prerrogativa, digamos, intrinsicamente profissional. O currículo muda sua perspectiva anterior. Agora, não tanto a serviço de uma missão revolucionária, mas revestido de um viés mais acadêmico, traduzindo uma política de qualificação, não exatamente motor revolucionário da sociedade brasileira” (2000, p. 453).